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Dia produtivo na firma

Dormi muito mal esta noite.
Talvez seja o estresse porque "demiti" meus colegas de trabalho, mas não tenho certeza.
É difícil ter certeza das coisas quando se vive nessa modernidade líquida.
Nossa, se eu ouvisse mais uma vez a Ribeiro me reclamando de algum bug no sistema, ou o Seu Lima me cobrando prazo, eu ia ficar maluco. Maluco!
Ainda bem que tomei a decisão certa antes.
Aqueles prazos não poderiam ser cumpridos nem que eu transcendesse o espaço-tempo.

Resolvi levantar, apesar do sono. Meu corpo implorava por mais algumas horas de descanso, estava zonzo, mas a cabeça agitada demais. Além disso, o colchão estava um pouco úmido. Provavelmente suor. Definitivamente suor, e não sangue.

Fiz um café. O aroma logo preencheu a cozinha. Estava uma manhã serena e linda, de extrema paz! O sol brilhava lá fora, os pássaros cantavam. Como deveria ser bom ser um pássaro e não ter preocupações maiores, como polícia ou aquecimento global.

Sentei no sofá para ver o noticiário, xícara de café fumegante em mãos.
Homem atira em colegas de trabalho e mata cinco. Polícia está buscando o suspeito. Ações da empresa despencam.
Que mundo violento.
Desliguei a TV, incapaz de suportar mais notícias sobre a decadência da sociedade.

Decidi dar a minha caminhada matinal. Sempre bom para a mente manter uma rotina. Passei em frente a uma banca de jornal no caminho. Algumas manchetes tinham fotos dos meus ex-colegas estampadas nas capas. Coitados, mas era o que precisava ser feito. Se ao menos o meu gerente não ficasse batendo na mesa o dia inteiro, ou se eu não tivesse recebido aquela ligação de cliente perturbando… Fazer o quê?

Ao voltar para casa, notei uma viatura policial estacionada na esquina. Meu coração disparou por um momento, mas mantive a calma. Será que houve algum assalto na região? Entrei em casa e tranquei a porta. Segurança em primeiro lugar, sempre foi meu lema.

Talvez eu tenha exagerado um pouco. Talvez houvesse outras formas de lidar com o estresse no trabalho. Yoga, por exemplo. Ou meditação. Ou até mesmo pedir demissão, trocar de emprego. O problema é que aquele era um emprego muito bom, muito bom mesmo. Pagava bem, e eu realmente tinha um fit cultural.

Meu pulso acelerava, meu estômago embrulhava. Será que era azia por conta do café? Não. Eu tinha que me entregar. Nesse momento, ouvi batidas fortes na porta. "Polícia! Abra a porta!"

Levantei-me. Caminhei em direção à porta com o corpo pesado. Antes de abrir, olhei pela janela uma última vez. O sol brilhava, os pássaros ainda cantavam. Pensei que era um lindo dia para ser preso. Respirei fundo. Abri a porta.

"Bom dia, oficiais! Como posso ajudá-los?"

Dois policiais me encararam. "Senhor Estourado Gomes? Pelas nossas investigações, o suspeito do tiroteio no escritório poderia estar atrás do senhor. O senhor viu ou ouviu algo suspeito?"

"Não, oficiais, nada suspeito por aqui."

Os policiais se entreolharam. "Bem, se o senhor notar algo estranho, por favor, não hesite em chamar", disse um deles.

"Certamente, oficiais. Tenham um bom dia", respondi, fechando a porta suavemente.

Voltei para o meu sofá, sentindo-me estranhamente leve. Liguei a TV novamente. O noticiário agora mostrava imagens do escritório, com faixas da polícia e investigadores por toda parte. Uma foto do suspeito agora estava disponível: o estagiário.

Fazia sentido, pensei. Esse aí era um que só fazia cagada. Terrível! Não se pode confiar em ninguém hoje em dia.

Saí novamente para começar a longa jornada até o escritório. Chegando lá, fui direcionado, após muitas condolências, a trabalhar numa sala de reunião livre. Tinha muito o que fazer. Primeiro, era preciso limpar minha caixa de entrada. É incrível como e-mails podem se acumular quando você está ocupado resolvendo conflitos interpessoais. E a maioria deles era de pessoas que, bem, não leriam mais e-mails. Deletar, deletar, deletar. Que sensação libertadora!

De repente, ouvi passos no corredor. Eles se aproximavam da sala de reuniões onde me encontrava.

"Bom dia!", disse uma voz alegre. Era Rique, o estagiário. Ele tinha escapado do layoff ontem porque estava em aula. "Onde está todo mundo? A nossa sala está trancada e tem um papel colado na porta dizendo pra vir pra cá."

"Ah, você não soube?", respondi calmamente. Existiria alguém mais desmiolado? "Houve uma grande mudança organizacional ontem. Somos só nós agora."

Os olhos de Rique se arregalaram. "Sério? Uau, que loucura! Então, quer dizer que eu fui promovido?"

Não pude deixar de rir. A inocência da juventude é algo realmente precioso. "Sim, Rique. Você foi promovido. Na verdade, nossos colegas também foram. O cargo deles agora está em outro patamar. Foi uma mudança muito disruptiva."

Rique sorriu com todos os seus orifícios faciais, empolgado com a notícia. "Que incrível! Mal posso esperar para contar aos meus pais e colocar no LinkedIn!"

Talvez eu devesse incluir Rique na reestruturação, afinal. Mas suspirei e me segurei. "Deixa isso pra depois, garoto. Só me faça um favor: se alguém perguntar, diga que eu saí cedo para uma reunião externa."

Saí da sala e liguei para a polícia, avisando que o suspeito estava na cena do crime. Decidi voltar para casa, pois não me sentia nada bem.

Olhando pelo lado bom, acho que toda essa situação vai contar de maneira positiva na minha revisão de desempenho trimestral; executei muitas competências. Pensei bastante  fora da caixa, por exemplo. Otimizei recursos humanos e essa função nem faz parte das minhas atribuições!

Cheguei em casa e desativei meu status na ferramenta de comunicação da empresa, mas antes de eu finalmente conseguir desligar as notificações sem culpa, meu telefone vibrou. Era um comunicado do meu diretor.

"Estourado, precisamos discutir os acontecimentos recentes do time. Você se importa em vir aqui na minha sala? É urgente!"


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