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Águas vivas

Era uma vez uma menina feita de água. A pele, tão comum a seres como eu ou você, não a cobria. Suas águas eram claras e límpidas, mas à medida que crescia, começavam a brotar nela sensações estranhas aos fatos da vida, embora permanecesse translúcida.

A chuva era revigorante, decerto, só que redemoinhos internos e ondas mexiam com ela, e ela via os outros à sua volta: não eram seus semelhantes, eram turvos. Alguns sequer pareciam água, densos e sólidos em suas convicções e paradoxalmente impermeáveis.

Um dia, sentiu-se demasiadamente estranha: um espasmo, uma náusea súbita. Pôs-se a vomitar e caiu no chão um peixe vivo, debatendo-se. Sentiu naquela hora um alívio, porém como nada dura para sempre, tão logo, nos dias seguintes, mais e mais começou a vomitar peixes de diversos tipos e tamanhos.

Numa hora eram peixes-espada, quando alguém a afrontava. Noutra eram peixes palhaços, quando se divertia. Em outra, eram peixes lanterna, quando tinha problemas severos em seus relacionamentos.

E as outras pessoas, que também eram águas diversas, acharam seu caso muito particular; nunca tinham vomitado peixe algum, e as que tinham peixes os guardavam para si no âmago, onde poderiam ficar vivos. Águas estagnadas, torrentes violentas, pântanos, águas salobras ou doces: nenhuma, nenhuma a entendia.

Insatisfeita com sua condição, ela, agora uma jovem crescida, procurava uma resposta.

Tentou se envenenar para matar os peixes, mas isso apenas fez com que cuspisse peixes mortos e mal cheirosos.

Tentou se congelar e se ferver, mas passar por essas torturas autoinfligidas apenas a fazia vomitar os peixes mais agressivos quando voltava a si.

Tentou encontrar qualquer outra cura; no entanto, seu caso era desconhecido na literatura médica.

Foi quando compreendeu, enfim: não havia cura porque não havia doença. Ela estava em um aquário limitado, como um oceano preso em um copo d'água.

Depois de muito sofrimento, finalmente vislumbrou a solução. Havia só um que a entenderia, e do qual poderia fazer parte: Jogou-se então ao mar, desapareceu completamente na vastidão, agora feliz, só, e totalmente livre.


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